
Mais do que um exercício o diálogo com a memória pressupõe a exposição dos sentimentos sem excluir um possível rigor analítico, aconselhável e até mesmo desejável nestas coisas de falar, mesmo que emotivamente, da obra de senhores que se expõem em papel. A memória, aqui, não advém de qualquer nostalgia, apesar de assumir um profundo respeito que não pretende tornar-se num lugar-comum, surgindo, precisamente, do diálogo não só exterior como de um processo intrínseco que desencadeia procuras de leituras nunca antes efectuadas. Os livros como matérias vivas da nossa imaginação ou, como neste caso, as revistas, fontes de narrativas emolduradas ora pela inocência ou pelo contraste irreverente e, não poucas vezes, arrogante no sentido de lançar caminhos ainda por perscrutar… Uma espécie de aventuras sem heróis ou qualquer outro elemento que sublimasse a nossa própria centralidade no mundo. Deste espanto e procura permanentes e a propósito de uma troca de comentários em redor da história A Torre de D. Ramires, de Eduardo Teixeira Coelho, encetei a leitura daquela que é possivelmente uma das mais originais narrativas gráficas que se me deram a conhecer deste singular autor português cuja memória, muito infelizmente, está mediocremente preservada, apesar de algumas tentativas terem sido esquiçadas. Felizmente a memória é um processo “vivo” e não depende somente das consequências editoriais ou académicas, não tendo sido difícil ter acesso a um volume da revista O Mosquito onde se apresenta a referida história de ETC com o título A Lei da Selva. Sabemos que são raras as narrativas em que o ser humano não é o centro capitular de uma história sequencial, sobretudo numa época em que a banda desenhada vivia dividida entre o desenho naturalista e a caricatura cuja descrição passava, obrigatoriamente, pelo elo comum das personagens e as suas infindáveis peripécias. Naturalmente, excluo aqui as tendências mais recentes de uma narrativa gráfica abstracta remetendo-me, quase exclusivamente, para o ano de 1948 em que esta banda desenhada foi editada na revista já referida, entre os números 900 e 943, de Fevereiro a Julho do XIII ano da sua publicação. A Lei da Selva é uma intensa história no seio do mundo animal, cuja personagem central é um leão que luta pela sua sobrevivência no cenário da natureza africana, chamando desde logo a atenção para o afastamento secundário a que são relegadas as presenças dos seres humanos.

No entanto, estes não deixam de ser actores participantes e, até mesmo preponderantes, no desencadear das acções ou no determinismo que circunscreve o destino das personagens principais desta narrativa. Sem dúvida, este é um trabalho impar pela sua proposta temática e da forma como se arroja em lançar um olhar sobre um universo que não depende das idiossincrasias humanas e tenta, mesmo que de forma arriscada e não raras vezes deturpada, apresentar uma outra dimensão no sentido de abrir o leque de possibilidades temáticas e imagéticas ao universo das narrativas gráficas; isto sobretudo numa época em que esta arte vivia mais dos estigmas do que das suas reais potencialidades. Ao que consegui apurar, a ideia da história e das suas acções foram do próprio Eduardo Teixeira Coelho, posteriormente trabalhada – ou trabalhada em conjunto – mas com a versão final escrita pelo editor da revista, o conhecido argumentista Raul Correia. Com uma marcada influência queiroziana, o texto por si só peca pela repetição excessiva de adjectivações que acabam por lhe retirar algum ritmo e quebrar a densidade necessária para que a sua máxima capacidade literária fosse de facto consequente e líquida, de um ponto de vista expressivo. O gosto pela escrita, no entanto, falha na complementaridade dos desenhos sendo que praticamente poderiam ambos ser vistos de forma independente, acrescentando pouco ou nada um ao outro. Mas talvez aqui a relação que importa sublinhar é a abordagem do “outro” no caso extremo de assumir um leão como personagem principal. Naturalmente, a história está impregnada pelos entendimentos – ou falta deles – da época, começando por uma estranha evocação da infinita sabedoria de Deus para nos mostrar um mundo natural impiedoso, quase exclusivamente envolto na violência e na perpetuação das acções sanguinárias.

A lei do mais forte chega a deturpar os papéis que na realidade acontecem onde, ao contrário do que esta narrativa sistematiza, são de facto as leoas que caçam no mundo natural e não os leões, apesar destes últimos se banquetearem primeiro. Os homens, neste caso africanos, relacionam-se de uma forma exclusivamente supersticiosa, não deixando de ser contrapontos narrativos que assumem uma aparente dicotomia orgânica que valoriza e dramatiza substancialmente a acção. Algo de estranho os une nesta abordagem arrojada e sem dúvida criativa de representar o outro, num extremo de experiências que de certo estes autores não tinham de forma próxima ou aprofundada. Seja como for, salientam-se inúmeras páginas de dinamismo e acção, quanto a nós espantosas, que permitem desfrutar do imenso talento interpretativo de que era detentor ETC, sendo uma injustiça esta história não existir na forma de um livro que melhor preserve a sua memória e mantenha o diálogo que estas linhas pretendem suscitar. Desse diálogo levanta-se a reflexão que, fora do senso comum, a lei da selva não representa somente as vicissitudes da vida natural vistas, não raras vezes de forma cínica, encontrando outros elos de ver o “outro” ou de o abordar como se todas as leis tivessem somente um carácter exemplar. Falar do outro pode ser um modelo apetecível para criar histórias imaginadas, bem ou mal conseguidas, acarretando no entanto uma responsabilidade que, quanto a nós, raramente é inteiramente assumida.

Curiosamente, logo a seguir a esta história, Eduardo Teixeira Coelho lança-se numa outra narrativa em que também o “outro” é alvo da sua imagética criativa. Mas, ao contrário da originalidade de A Lei da Selva, no caso de Lobo Cinzento a inverosimilhança desencadeia uma sequência de acções rotundamente falhadas e desconexas, em relação às atribuições culturais que tenta evocar e das quais transforma num estranho paliativo de sucessões de vingança e violência. Apesar das nossas volumosas bibliotecas e dos mais recentes actos de contrição, em relação às abordagens etnocêntricas que têm populado as mais diversas bandas desenhadas, existirá sempre uma fronteira da qual nunca poderemos atravessar impunemente, colocando-nos permanentemente na posição de apenas podermos respeitar, tentar compreender ou, em casos menos comuns, aceitar o outro, naquilo que é e representa. Em Lobo Cinzento, ETC faz tábua rasa das particularidades sociológicas tornando idênticas as características culturais de diversas etnias indígenas da América do Norte, envolvendo a sua personagem principal numa sequela inverosímil e irrealista de vinganças “bíblicas” que resultam numa história onde a única coisa que se passa são lutas intermináveis que desencadeiam novas lutas intermináveis. A intensidade desta resolução é tal que a narrativa se torna cansativa e exaustiva no esgotamento da sua proposta. Pior que tudo, os índios não combatem sequer com as particularidades que lhes são inerentes, parecendo antes embates medievais que remetem constantemente para a imagem de um Príncipe Valente a combater numa ponte, sozinho, confrontado por centenas de espadachins que são despachados sucessivamente. A lei da selva também é cultural e é pena que um autor que, tanto noutros casos como inclusivamente nesta história, desenvolve imagens de uma inovação gráfica, nomeadamente ao nível de certas estilizações ou como no conjunto de muitas das suas composições de vinheta ou página inteira, tivesse passado de uma experiência plena de originalidade para a mais pura e cega banalização da visão que poderia ter do “outro”.

Naturalmente, sempre se poderá invocar as razões de contexto da época para desculpar abordagens ou critérios que podem ser criticáveis. Mas essa é uma justificação paternalista, reforçando ainda mais a negatividade dos conteúdos em detrimento de uma observação justa e clara que possa precisamente fomentar o diálogo e a reflexão. Na lei da selva, Lobo Cinzento é antes de mais um movimento criativo livre e voluntário, não sendo pré determinado por nenhum fatalismo ou imposição exterior. Talvez pudéssemos dizer que, de um ponto de vista cultural é um exercício preguiçoso mas que nunca poderá ser desculpado por factores de ordem externa aos critérios íntimos do seu autor. Aliás, a questão do outro, nomeadamente no que diz respeito aos Ameríndios, suscita parâmetros que não abarcam somente o mundo da arte, como o cinema, a literatura ou a banda desenhada e tem repercussões que afectam directamente essas comunidades e a sua justa memória.

No sentido de manter o diálogo nesta lei da selva, ocorre-nos, ainda a propósito de Lobo Cinzento, de falar em outros dois livros onde as dicotomias palpáveis podem continuar a incorrer no risco da sobrevalorização, muitos anos após a edição do Mosquito. Autor de múltiplas qualidades inegáveis, Hugo Pratt escreveu o argumento de Un Eté Indien (Casterman, 1987) para Milo Manara, aparentemente sem uma acepção redutora e primária dos índios das florestas do norte, no advento da colonização ocidental da América do Norte. No entanto, apesar da qualidade geral do argumento desta história, não deixamos de ter a sensação de que os Ameríndios são os actores ou representantes de uma barbárie que infesta as florestas como animais selvagens, ditando as leis da selva contra a qual se debatem os colonos europeus, naturalmente apimentados pelos seus caracteres refinados e por uma sensualidade de excessos eróticos, imagem de marca – ou processo incontornável – do desenhador italiano. À excepção da bela cena em que os índios dialogam na praia, ou numa outra curta sequência posterior, a sua presença está impregnada de violência e vingança; não raras vezes sendo representados de semblante risonho nas cenas mais absurdas de combate e pilhagem. A questão aqui não passa pelo etnicamente correcto ou por uma valorização sentimental do “outro”; mas sim pelo “outro” como representação arbitrária, excluído de uma certa identidade real, para se transformar num arquétipo minimamente razoável simplesmente para justificar uma acção que lhe é estranha e inócua. Pratt provou não ser um autor etnocêntrico, no entanto nunca resistiu a assumir as figuras de estilo que subordinou às narrativas que pretendia fazer desenrolar, numa forma, quanto a nós, tão premeditada e inconsequente como ETC o fizera com Lobo Cinzento. A verosimilhança chega a ser tão incrédula num caso como no outro, imperando a lei da selva de cujas imagens redutoras se tornam mais aliciantes do que as circunstancias descritas. Aqui, o “outro” é uma peça narrativa que, apesar das suas características aparentes, está subordinado ao papel de correr o risco de ser um estranho na sua própria casa; assumindo no fundo um papel secundário cujo único interesse é o de despoletar a acção dramática, com pouco que o identifique para além da intriga central.

Ao contrário desta história, As Lágrimas do Tigre (Edições Asa, 2002) parte de um argumento muito fraco para criar uma narrativa em que o “outro” é apresentado – ou recriado – numa perspectiva pertinente e sociologicamente credível, demonstrando de uma forma simples e graficamente plenamente conseguida, como a identidade etnográfica pode ser minimamente respeitada para criar uma narrativa que não negligencia o que nos é estranho, evocando elementos próprios da sua identidade – mesmo que de uma forma indirecta – sem a presunção de a decalcar ou de a afastar dos elementos que lhe são característicos. Comès não está, de facto, à altura dos argumentos de Hugo Pratt mas soube dialogar, sem dúvida, dentro da fronteira invisível que se desenha nas contendas da lei da selva e soube melhor falar do outro do que dele próprio; algo que muitas obras vastamente aplaudidas, infelizmente, nunca o chegaram a conseguir.
Diniz Conefrey
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