A memória como contratempo exercido para que se fixe o que em si, naturalmente, segue em fluxo contínuo. A humanidade consegue fixar, registar. Escreve, faz incisões de gestos e atém. Prende ou, se quisermos, sustém. Julgo que o faz por contraponto ao volátil, tem medo do esquecimento, da morte. Usa as palavras que conjugam as pessoas num lugar de encontro partilhável. Entendível, desincriptável. Criou um modo de dizer que nomeia e, esperançosamente, o faz para que se entenda o propósito do inexplicável. Pode fazê-lo segundo uma tradição oral, ou fixar por inscrição: para ser lida. Duas formas de permanecer no espaço da memória.
Um livro é antes de mais um registo. Um pensamento que, ao apresentar-se para ser lido, supera a ideia de perda através da fixação. Nada garante que quem chega leia do mesmo modo como foi escrito, mas terá decerto uma leitura acertada com cada indivíduo, na sua intimidade. São de imensa acumulação os texto escritos. São demasiados e contudo belos nisso de serem vozes únicas de cada vez que se apresentam.
No caso da oralidade, que passa de uns para outros, fica sujeita a uma escolha e à delimitação do corpo que recebe a informação. Para mim fica mais leve e contemporâneo o que é dito. Será o testemunho do corpo em vida que o saberá fazer, ajustando-o à sua existência em continuação. Um upgrade vivêncial. Tarkovsky disse que os seus filmes seriam feitos apenas por estar em desequilíbrio com a vida, de outro modo a Arte não seria necessária.
Sugiro a leitura do livro «O Homem Livre» de Filipe Verde (Angelus Novus, Editora. Coimbra, 2008). Nele encontrei apoio no que tenho vindo a considerar como importante para sustentar a vida no meio de tantas vozes. Este livro aproxima-se dos Bororo e de como uma comunidade dita “simples” lida com a dualidade. Perante a anarquia da Natureza, onde também os seres humanos estão inseridos, através do corpo compulsivo que corresponde aos apelos da força natural e, ao mesmo tempo, a presença dos aroe: os espíritos que estão abertos à possibilidade de se pensar.
Participando o ser humano nestas duas vivências em simultâneo e interagindo entre elas, cabe-lhe um equilíbrio que decorre de regras segundo uma ética que faz juz à palavra. A palavra aparece como definidora de princípios éticos, que sustentam caudais de comportamento humano equilibrado.
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