
José Luis Romo. México soy, 1992.
A memória é, em parte, um sonho cristalizado no espaço pois o seu tempo mantém-se em suspensão permanente, sempre que as suas imagens evocativas são chamadas à presença da consciência do presente. Ela não vive de imagens nebulosas mas da afirmação dos detalhes que, juntos, constituem um tempo afectivo e de certa maneira caduco; pois estes tendem a esbater-se com o risco de se transformarem em fragmentos de particularidades semióticas. Antes que tal aconteça, recordo uma viagem de fim de semana, saindo sozinho da cidade do México em direcção ao estado de Veracruz. Os autocarros de longo curso no México são excelentes, confortável e seguro admiro a paisagem, com Teotihuacan ao longe à medida que nos dirigimos para norte e o planalto vai sendo substituído por altas montanhas. Para mim, o único senão são os filmes que as transportadoras passam nos inúmeros ecrãs que distraem os passageiros. E é pena, pois as paisagens montanhosas são surpreendentes, cobertas de névoas, por entre os aguaceiros e a densa vegetação. Ainda mais para norte e o sol impõe-se rasgando as nuvens, onde bem alto vejo inúmeras aves, de porte médio, planarem sobre os caminhos. Sinto a frescura do ar condicionado e imagino que no exterior a temperatura deve ser baixa, pois o tempo apresenta-se cinzento. Numa breve paragem, esta impressão é contrariada pelo intenso calor abafado que se faz sentir, enquanto fumo um cigarro.

Diego Rivera. Cultura Totonaca – pormenor – 1950.
São cerca de 3 a 4 horas de viagem até chegar a Papantla. A pequena cidade aninha-se em V nas encostas íngremes da Sierra Madre Oriental. Papantla é um dos poucos centros que sobrevivem da cultura Totonaca. Conquistados pelos poderosos Mexica, por volta de 1450, os Totonacas depressa se vingaram ajudando Cortês a esmagar o “império” Tenochca no século XVI. Na moderna Papantla, indígenas descalços vestidos de branco partilham a praça com os adolescentes tatuados. Rituais Totonacas persistem no voo dos voladores, uma impressionante cerimónia acrobática em tempos repleta de significado religioso; agora apenas executada aos fins de semana para o prazer dos turistas. Está um calor asfixiante e o dia está a chegar ao fim. Tomo um duche e mal saio da banheira estou a pingar suor por todos os poros. A luz do fim da tarde acentua a sensação de irrealidade em sonho onírico. As ruas são íngremes e pela noite estão repletas de transeuntes, com muita animação na praça principal. Misturo os acordes desprendidos da banda que toca no coreto com as cervejas Negro Modelo, que vou bebendo no salão do restaurante que se abre imenso para a rua. É um tempo de sonho e de paixão na minha vida. Tudo parece fluir numa rodagem desprendida e simultaneamente disponível. Mas não é um tempo romântico e quase não dormi de noite, com o calor, o barulho dos automóveis e a enorme ventoinha de tecto ligada todo o tempo. Papantla é uma boa base para explorar El Tajin, as ruínas arqueológicas que eu procurava, a sul da cidade. Assim, no dia seguinte, apanhei a pequena camioneta que perfaz estreitos caminhos por entre a serra até apanhar a estrada maior que, bem cedo pela manhã, deixa os seus poucos passageiros ás portas do recinto histórico.




Foi no primeiro século, antes da nossa era, que começou a edificação da grande cidade clássica de Tajin, no centro de Veracruz. O povo que a construiu seria aparentado dos Huaxtecas – querendo dizer que teriam definitivamente longínquas origens Maias – e que teriam chegado há muitos séculos aos territórios da Costa do Golfo. El Tajin significa em Totonaca «o relâmpago», «o raio» ou «o tornado». O Deus que aqui era venerado reinava sobre o furacão, chamando-se: Hurakan. A grande arquitectura começou com a construção de pirâmides, em particular com a principal de entre estas, nesta fase desprovida dos nichos que lhe dariam, mais tarde, o nome. O seu primeiro estado remonta a 300 da nossa era. O desenvolvimento da cidade acelera-se entre 400 e 800 – época em que a sua superfície totalizava cerca de 10 Km quadrados – fase que se classifica como o apogeu clássico de Tajin. Parece que no século IX, por volta de 818, uma vaga de invasores Totonacas penetrou em Veracruz, onde se estabeleceram. Os Totonacas vão habitar a cidade que parece conhecer um eclipse temporário. Dois séculos mais tarde, pelo ano 1000, será a vez dos Toltecas irromperem em Tajin. Com efeito, é deste período totonaco-tolteca que datam as realizações do Pequeno Tajin – em particular o batimento das Colunas – assim como os baixos relevos do jogo da pelota sul. Depois de dois séculos de apoteose – pode-se falar de uma renascença Tolteca em Tajin, como em Chichén Itzá – a cidade sucumbe a uma invasão bárbara. Ela será então incendiada por volta de 1230 e abandonada definitivamente.

A Pirâmide dos Nichos, ao fundo, vista da praça central de El Tajin.


A Pirâmide dos Nichos.


El Tajin tomba então no esquecimento e não tarda a ser coberta pela selva que esconde as suas ruínas, sobrepostas por sob um espesso manto de vegetação. Os invasores espanhóis ignoravam a sua existência e terá que se esperar até 1885 para que administradores espanhóis descubram a famosa Pirâmide dos Nichos que sozinha apresentava ainda formas reconhecíveis sob as lianas e os troncos que a envolviam. Quando se entra na praça principal desta cidade, observam-se uma série de edifícios circundando um grande adoratório quadrado. De todos os lados, mantém-se erguido este sonho hierático que um dia os homens construíram; pirâmides, plataformas e santuários. Olhando as altas montanhas que circundam todo o espaço do recinto, consegue-se compreender o porquê destas montanhas míticas formuladas por mãos humanas. Só que aqui o espaço é geometrizado e as “montanhas” predispostas de forma organizada e não telúrica. Quase todos os edifícios comportam os motivos característicos dos nichos quadrados formando, uns ao lado dos outros, verdadeiros frisos com ressonância de ritmos percurssivos. A Pirâmide dos Nichos apresenta 365 aberturas o que se trata indubitavelmente de um simbolismo relacionado com o numero de dias do ano solar. Se acrescentarmos as duas séries de 13 gregas escalonadas que bordam as rampas dos degraus, figurando os nomes dos “meses” de 20 dias do ano sagrado mexicano, poderemos inferir que os arquitectos de Tajin concretizaram uma conjugação de noções fundadas no calendário para edificarem a Pirâmide dos Nichos.




Um dos muitos campos de jogo de bola de El Tajin.
Destaca-se também, nesta antiga cidade, uma grande profusão de campos de jogo de bola, “desporto” sagrado dos povos Pré-Colombianos que os Mexica denominavam de tlaxtli. Em Tajin, a grande maioria dos campos deste jogo não têm a forma característica de um I, sendo apenas um campo rectangular ladeado por estruturas de pedra. Sem apresentarem o dispositivo de anel, nas paredes laterais, por onde a bola deveria passar. Ignora-se as regras deste jogo na cidade de El Tajin, apenas os baixos relevos pós-clássicos nos aportam registos sobre as implicações culturais deste jogo. Eles podem clarificar, com efeito, qual era o uso de certos acessórios que as esculturas emblemáticas reproduzem. Trata-se particularmente das famosas «fivelas» em forma de U, das «hachas» (máscaras finas de pedra) e das «palmas»; objectos que permaneceram por muito tempo misteriosos. As «fivelas» eram provavelmente feitas de madeira, fixadas em torno da cintura e teriam um papel «deflector» da bola e simultaneamente de protecção. De referir que estas bolas de borracha (material desconhecido no Velho Mundo) atingiam vários quilogramas de peso e poderiam ser impulsionadas a grande velocidade. Quanto ás «palmas», elas possivelmente serviriam para parar ou relançar a bola, mostrando-se a sua disposição nos baixos relevos do campo sul de Tajin. Quanto ás «hachas», a sua função não está ainda completamente elucidada.

O célebre baixo relevo do sacrifício humano, figurando no grande campo de jogo de bola meridional de Tajin. Esta cena é um exemplo típico da arte pós-clássica de Veracruz, datando da renascença Tolteca, situada entre os séculos XI e XII da nossa era.
O que se pode depreender do conjunto dos baixos relevos de El Tajin é que o jogo de bola poderia ser acompanhado, em caso de grandes cerimónias, com a morte de um dos seus protagonistas. Este era sacrificado solenemente pela extracção do coração (ou decapitação), como se pode ver no baixo relevo nordeste do campo maior de Tajin. De facto, os sacrifícios humanos eram destinados a regenerar as forças divinas e, em particular, a conferir ao solo a força que lhe permitia prosseguir o seu ciclo diurno; após ter sido sombreado no mundo inferior da noite. Esta associação do jogo de bola com o movimento solar é uma constante nas culturas Pré-Colombianas. Com efeito, não é evidente que o vencedor do jogo seria poupado aos deuses, como nos pereceria normal conceber segundo uma óptica moderna. Isso seria não ter em conta a mentalidade muito particular de populações profundamente místicas – verdadeiramente reverentes aos deuses – que viviam no mundo mesoamericano, muito especialmente no México. Poder-se-ia avançar várias razões para dizer que era o vencedor que “merecia” a morte, graças à qual ele acederia ao universo dos deuses. Nessa perspectiva, ele combateria até ás suas ultimas energias para poder subir à pedra sacrificial. Até porque, ao sacrificado, é assegurado o acesso ao panteão divino. De qualquer forma, é conhecido o espírito de auto-sacrifício próprio das populações indígenas. E mesmo na época actual temos o testemunho, tanto de macerações de peregrinos à Virgem de Guadalupe, como dos candidatos que disputam a honra de representar o papel de Cristo nas festas comemorativas da Paixão; onde a crucificação não é somente simbólica e se pratica com a ajuda de grossos pregos perfurantes espetados na palma das mãos…




Fotografia de Mireille Vautier. Os voladores. Esta foi a primeira cerimónia interdita pelos invasores espanhóis que a consideravam perigosa. Ela evoca o ciclo sagrado de 52 anos das civilizações Pré-Colombianas.
Mas neste sonho, dentro desse outro construído (e reconstruído) pelas mãos dos homens, ficaram os campos dos jogos para trás. No extremo norte deste recinto arqueológico encontra-se uma estrutura em forma de uma grega escalonada gigante (o termo deste padrão em língua nahuatle é Xicalcoliuhqui), perdendo-se parte desta construção por entre a vegetação em redor que vai cobrindo o espaço montanhoso. O calor agora é novamente sufocante e paro à sombra das árvores, esperando que o suor deixe de escorrer. Sou então submerso pela imensidão dos sons penetrantes e harmoniosos de aves que nunca antes tivera a oportunidade de escutar. Sons de uma beleza profunda e delirante pelo seu exotismo, ao que me deixo render de olhos fechados e sentidos desprendidos. Depois é o retorno a Papantla, onde almoço na varanda de um restaurante, enquanto observo o ritual dos voladores que sobem ao altíssimo poste. No topo esperam sentados numa ténue estrutura quadrada, giratória, enquanto um deles toca a sua flauta, de pé, marcando simultaneamente o ritmo num minúsculo tambor. Depois os homens largam-se de cabeça para baixo, apenas atados pelos pés, rodando e descendo à medida que as cordas se vão desenrolando, com o musico a marcar o ritmo. A realidade não existe. O mundo é um sonho de memórias cristalizadas e o tempo mantém-se em suspensão permanente.
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