Domingos Isabelinho
(Texto escrito por ocasião da publicação da lista dos dez melhores comics de sempre no blogue The Hooded Utilitarian.)
Ainda em estado de choque, ao constatar que a subcultura bedéfila continua tão surda e isolada nos seus critérios estéticos como há dez anos (desde a infâme lista da revista The Comics Journal), não se tendo movido um milímetro, lembrei-me de Dwight Macdonald o qual, na revista Politics Vol. 2, nº 4 (sendo, mais ou menos, mensal, o nº 15) de Abril de 1945, escreveu:
“Seria interessante saber quantos, dos dez milhões de comic books vendidos todos os meses, são lidos por adultos. […] Sabemos que os comics são a leitura favorita dos nossos homens nas forças armadas, e que os filmes do Oeste, juntamente com programas de rádio como O Mascarilha e Capitão Meia-Noite não são, de maneira nenhuma, apenas apreciados por crianças. […] Esta mistura da audiência infantil com a audiência adulta significa [uma] regressão infantilizante desta última, incapaz de enfrentar as complexidades da sociedade moderna!”
Não concordo, certamente, que a infantilização dos hábitos por parte dos adultos signifique que as pessoas não conseguem enfrentar as complexidades da sociedade moderna. Pode significar apenas que os leitores de comics querem (por um momento) escapar às ditas complexidades. Enfim, suponho que pretendem escapar à própria vida, ou, pelo menos, a essas partes da vida que não podem ser representadas pelo kitsch… Repararam como a morte e a exploração capitalista estão praticamente ausentes desta lista dos dez melhores (e não me refiro à morte à maneira de Daffy Duck; Maus e a morte de Speedy, em Love & Rockets, são a excepção)? Repararam como há ausência de vida nestes comics? (E quero dizer que estão desvitalizados no sentido em que não estão relacionados com a vida de nenhum modo – Dwight Macdonald também me ajudou a perceber isto quando disse a Pauline Kael, numa ocasião em que ambos discutiam o cinema norte-americano: “Como é que te referes a vitalidade? Quer dizer, rudeza, concedo, mas vitalidade? É possível ser-se rude sem se ser vital, sabes?”)
Não posso estar mais de acordo com David T. Bazelon quando escreveu na revista Politics (Vol. 1, nº 4, Maio de 1944):
“Superman dá-nos uma satisfação em segunda mão para paliar frustrações sociais. Não pode ser trágico ou desagradável, nem pode conter esse realismo essencial que é uma qualidade de toda a boa arte. Porque [Superman] tem um propósito: é arte ao serviço das neuroses sociais. E esse serviço é o significado da maioria das comic strips… As pérolas são produzidas, não ao serviço, mas em oposição à doença.”
Só agora compreendo o verdadeiro significado da frase “os comics já não são apenas para crianças”. O que a frase quer realmente dizer é que os comics mais populares, mesmo que continuem a ser produzidos, tendo principalmente as crianças como alvo comercial, são também desfrutados pelos adultos. Com frases como a frase acima, e com frases similares, quem está entrincheirado no gueto da subcultura quer vender uma imagem falsa para o exterior (fica-me agora definitivamente provado que a leitura acima é a leitura correcta ou então, estão a mentir).
Não quero dizer que a lista do blogue The Hooded Utilitarian dos dez melhores comics de sempre (junto com outras no género) é desprovida de valor. Como escrevi neste mesmo blogue: não tenho nada contra o entretenimento popular. E também acho que uma visão das coisas que coloca a boa arte contra a má, numa perspectiva a preto e branco, não é lá muito inteligente ou productiva. Gosto de uma série de coisas pop delicodoces (Gasoline Alley, por exemplo). Acho é que empalidecem em comparação com o trabalho de Tsuge ou Fabrice Neaud. É esse, para mim, o busilis da questão, enquanto o delicodoce é canonizado, o trabalho mais substancial é esquecido.
Suponho que se pode dizer que trabalho ainda mais substancial (se tal é possível) também não é incluído. Mas, aí, a infantilização do público leitor não é a única barreira. O essencialismo é a segunda fronteira (uma fronteira ainda mais poderosa).
Rosalind Krauss escreveu um ensaio importante sobre quão perplexo se tinha tornado o conceito de escultura no final dos anos de 1970: A Escultura No Campo Alargado (revista October, Vol. 8, Primavera, 1979). Pedi-lhe emprestado o seu conceito de campo alargado e apliquei-o à banda desenhada.
Rosalind Krauss critica o historicismo no seu ensaio. O historicismo é também um problema no contexto do campo alargado da banda desenhada por dois motivos: (1) porque a minha expansão do campo é, em grande parte, ahistórica; (2) porque alguns críticos vêem a banda desenhada como arte que não muda (Alan Gowans) ou como uma arte pós-histórica (David Carrier).
Chegados aqui só posso continuar depois de uma análise ao que chamei “o mito das origens” e “o problema da definição de banda desenhada”.
Há, pelo menos, cinco campos culturais para onde o campo da banda desenhada se pode expandir: (1) a pintura e a ilustração medievais (sem excluir artes mais antigas); (2) os ciclos de gravuras sem palavras; (3) a pintura moderna e pós-moderna; (4) a poesia visual e concreta; (5) o cartoon. Nenhum destes campos tem ligação à banda desenhada no entender das pessoas em geral. Todos têm, por razões várias, problemas em ser aceites no seio da subcultura. Examino, em seguida, algumas das objecções:
- A banda desenhada medieval (chamemos-lhe assim), não foi produzida para consumo popular: as matrizes não foram reproduzidas, era muito cara, era propriedade da aristocracia. Desde o início da bedéfilia que a banda desenhada foi vista como arte popular: filha da Revolução Industrial e meio de comunicação de massas (assim: a banda desenhada nasceu nos Estados Unidos da América com a publicação da personagem Yellow Kid, mais propriamente com a publicação da página “The Yellow Kid and His New Phonograph” a 25 de Outubro de 1896 no diário New York Journal; esta é uma posição que o estudioso norte-americano Bill Blackbeard sempre defendeu). Para além do critério socilógico temos de acrescentar, neste caso, dois critérios formais: a existência de vinhetas justapostas e a existência dos chamados balões. Negando a necessidade destes últimos alguns estudiosos europeus (Thierry Groensteen e Benoît Peeters, por exemplo) defendem que a banda desenhada começou com a primeira “histoire en estampes” de Rodolphe Töpffer (Histoire de M. Vieux Bois foi desenhada em 1827 – Histoire de M. Jabot foi publicada em 1833; os töpfferianos que forem fundamentalistas da imprensa dirão que Jabot é a primeira banda desenhada, os outros töpfferianos dirão que não, que Vieux Bois é que é). No seu livro The Early Comic Strip (1973) o historiador David Kunzle defendeu que os primeiros comics foram criados pouco depois da invenção da imprensa por Johann Gutenberg (Les Simulacres et historiées faces de la mort de Hans Holbein é um dos primeiros livros que cita, mas o seu exemplo mais famoso é A True Narrative of the Horrid Hellish Popish Plot (c. 1682) de Francis Barlow. David Kunzle converteu-se posteriormente ao töpfferismo (mais recentemente publicou um livro intitulado Father of the Comic Strip: Rodolphe Töpffer, 2007). Já agora, as duas páginas de Barlow preenchem os critérios de Bill Blackbeard: foram impressas, têm uma grelha, têm até balões ou algo similar (Robert S. Petersen chama-lhes “emanata scrolls” [pergaminhos que emanam]).
- Os ciclos de gravuras, de Jacques Callot a Eric Drooker, não são tão difíceis de aceitar (no corpus da banda desenhada) como as iluminuras medievais. Isto é assim porque nasceram de uma ideia de que a arte devia ser mais democrática: as gravuras são mais baratas do que quadros e esculturas. Mesmo assim a divisão alto / baixo pode ser, aqui, uma objecção séria. Mesmo se Frans Masereel tinha uma sensiblidade de esquerda e os seus ciclos foram (são) publicados em livro, a verdade é que ele foi um pintor sério, e, portanto, estava do lado errado desta barreira sociológica. Se eu defender que Picasso foi um artista de banda desenhada a subcultura bedéfila chama-me elitista e snob (fazendo o seu habitual processo de intenções dizem que pretendo incluir no cânone da banda desenhada artistas com muito prestígio no mundo da arte só para elevar o prestígio da primeira). Os aspectos formais também são um problema: os ciclos de gravuras não têm balões nem grelhas.
- Para o mundo da banda desenhada quadros e poemas (visuais ou não) não são banda desenhada, ponto final. As pranchas são regularmente exposta em galerias de arte, museus, e festivais de banda desenhada (uma tradição forte na Europa usa a arte original como um foco de atracção importante), mas não é a isso que me refiro. Refiro-me à banda desenhada que não é pensada para ser reproduzida e é criada exclusivamente para ser exposta em galerias de arte. A maioria diria que estes objectos são quadros inspirados na banda desenhada. Mas se não acreditarem em mim acreditem nos próprios artistas pois estes chamam ao que fazem “gallery comics” [banda desenhada de galeria]. Peço desculpa pelo namedropping, mas refiro-me a: Christian Hill, Mark Staff Brandl, Howie Shia. Andrei Molotiu também pode fazer parte desta lista assim como Paper Rad: estes últimos com fortes ligações ao meio da banda desenhada. Quanto à pintora brasileira Rivane Neuenschwander, à pintora norte-americana Lailah Ali e ao pintor suiço Niklaus Rüegg, são casos interessantes porque, não só pintam, como os seus quadros servem como arte original (no sentido em que a expressão se usa no meio da banda desenhada) para a publicação de comic books (pelo MOMA e pelas edições Fink, respectivamente).
- Durante os anos de 1950 o Brasil esteve na vanguarda da poesia. Inspirados pelo “Coup de dés” de Stéphane Mallarmé, pelos caligramas de Gillaume Apollinaire, pelo dadaísmo, pelo imagismo de Ezra Pound, Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Pedro Xisto e outros criaram a poesia concreta. Num poema concreto a tipografia e o espaço negativo da página têm tanta importância como as palavras. Os sons são mais importantes do que o significado (ou novos significados nascem quando as palavras se reinventam e se reorganizam no espaço da página). A poesia visual e concreta pode provar que a banda desenhada sem imagens pode existir da mesma forma que existe a banda desenhada sem palavras.
Se considerarmos os vitrais medievais como banda desenhada (algo que não é tão estranho como parece) a banda desenhada medieval pode ser vista como “arte de massas”, mesmo que não se trate de arte impressa. (David Kunzle opina de forma diferente: “um meio de comunicação de massas é móvel; viaja até ao homem, não requer do homem que viaje até ele.”) Quanto às grelhas e aos balões, é possível encontrá-los na banda desenhada medieval, acredite-se ou não. Eis o que disse Thierry Groensteen na Platinum List (18 de Janeiro de 2000):
“Danielle Alexandre-Bidon, uma especialista na Idade Média, evidenciou o facto de que a banda desenhada existia nos manuscritos medievais dos séculos XI, XII e XIII. Centenas, senão milhares, de páginas contêm linhas cinéticas, balões, efeitos sonoros, etc… A linguagem da banda desenhada já tinha sido inventada, mas estes livros não foram impressos. Depois de Gutenberg o texto e a imagem deixaram de estar tão intimamente ligados e pode-se dizer que o segredo da banda desenhada se perdeu, até que Töpffer o redescobriu.”
Isto é revelador: mesmo o mais fervente defensor de Töpffer como “o pai da banda desenhada” disse aqui que ele a “redescobriu”. Isto é semelhante a dizer-se que Cristóvão Colombo redescobriu a América (não pode tê-la descoberto porque, quando lá chegou, encontrou gente que já lá vivia). O mito das origens da banda desenhada é essencialista: é uma escolha arbitrária baseada numa definição igualmente arbitrária (sendo que a segunda precede a primeira). (E, estou seguro, não sou o primeiro a dizê-lo, neste fórum ou noutro.) As duas definições mais comuns (pelo menos é o que me parece) são de ordem social (a banda desenhada deve ser impressa e distribuída às massas) e de ordem formal (as características essenciais da banda desenha são a sequencialidade, as relações entre texto e imagem, os balões, a justaposição das vinhetas, etc…). As definições sociais têm dois problemas: (1) o paradoxo sorites (ou paradoxo “do monte” ou “da pilha”): se um grão de trigo não faz um monte, dois grãos também não; […] se três mil grãos de trigo não fazem um monte, três mil e um também não; etc… Quando é que não temos um monte para, finalmente, passarmos a ter um? Este paradoxo pode ser aplicado às tiragens. (2) As definições sociais são habitualmente utilizadas para negar o estatuto de banda desenhada às produções medievais. O que eu digo é que devem ter sido reproduzidas num momento qualquer porque as vi e li sem nunca ter visto os originais. Há ainda um terceiro ponto: como é que uma cópia exacta de uma prancha é banda desenhada enquanto que a prancha em si não o é? Leonardo de Sá rebateu este ponto de forma inteligente dizendo que isso acontece da mesma forma que a reprodução de um quadro não é um quadro. Nada mal, eu diria… mas… se usarmos as teorias de Nelson Goodman sobre artes falsificáveis e não falsificáveis diríamos que a pintura é autográfica e de estádio único enquanto que a banda desenhada é autográfica e de n-estádios (aqui, a teoria é minha). É por isso que a reprodução de um quadro não é um quadro enquanto que uma prancha é banda desenhada.
As definições formais também têm problemas; vou mencionar dois. (1) Qualquer definição formal escolhe umas características de forma arbitrária enquanto esquece outras. Isto quer dizer que, se eu escolho dizer algo como “o balão é essencial à existência de banda desenhada” (ups!, lá se vai o “Príncipe Valente”) ou “a relação texto-imagem define a banda desenhada” (ups!, lá se vai a banda desenhada sem palavras pela janela fora) nenhuma banda desenhada pode existir. Porquê? Porque todos os comics têm vinhetas sem balões e sem palavras, etc… Assim, a experiência de um leitor de banda desenhada seria algo como: agora estou a ler banda desenhada, ups, agora já não estou, etc… (2) Toda a arte se baseia na experimentação. Os artistas mais inventivos estão sempre a empurrar os limites da sua arte. A banda desenhada não é excepção, mas se lhes pomos um garrote formal o que acontece é que: (1) perdemos alguns feitos artísticos importantes (os que defendem a banda desenhada como arte de massas estão-se nas tintas, obviamente, mas eu, como exemplo, preocupo-me) e (2) limitamos seriamente a criatividade dos artistas que escolhem fazer banda desenhada. Outro problema é que não podemos olhar para trás, para artistas como, digamos, Charlotte Salomon, e ver o seu trabalho como banda desenhada (de novo: aqueles que defendem que a banda desenhada…). Parece que toda a banda desenhada tem sequências, mas mesmo este ponto foi contestado numa discussão que tive com Eddie Campbell há muito: ele incluiu os cartoons com uma vinheta só no conceito de comics. Quanto a mim?, não tenho nenhuma definição para oferecer. Prefiro dizer como Santo Agostinho: se ninguém me pergunta, sei o que é; se tento explicar o que é a quem pergunta, já não sei.
Assim, se negarmos o essencialismo podemos olhar para trás e olhar à volta para encontrar grandes bandas desenhadas. Não tenho nenhuma solução para o ahistoricismo da expansão no tempo e no espaço social. Picasso não se via como um artista de banda desenhada (mesmo se gostava desta arte) e o mundo da arte à sua volta também não. Mesmo assim… se há historiadores de arte a dizer que Sonho e Mentira de Franco são duas gravuras (e isto é o que são, claro) outros mais recentes (Juan Antonio Ramirez, por exemplo) dizem que se trata de um comic. Isto significa que nós (mesmo se parte deste “nós” não pertence ao meio da banda desenhada) podemos olhar para locais inesperados e reparar em múltiplas instâncias em que reconhecemos a existência de banda desenhadas (Frans Masereel, por exemplo, já se tornou um lugar-comum: tenho a certeza de que os artistas do paleolítico não se viam como pintores e não chamavam “pintura”, no sentido actual, ao que faziam). Quanto à banda desenhada como arte que não muda ou arte pós-histórica, pode ser verdade (se bem que tenho muitas dúvidas) se a considerarmos uma arte de massas, mas não estaremos, nesse caso, a excluir carradas de artistas alternativos? Estou a tentar ser razoável, mas, para falar francamente, isto parece-me um disparate pegado.
Não votei [na top ten list do blogue The Hooded Utilitarian] em nenhum artista ou trabalho incluído no campo alargado (talvez The Cage, de Martin Vaughn-James faça parte do dito – Robert [Stanley Martin] disse-me que realmente houve votos nesse sentido: Cy Twombly, Max Ernst, e mais alguns), mas caso decidisse fazê-lo receio que quase todas as minhas escolhas recairiam nessa categoria. Quem, no campo restrito da banda desenhada, pode rivalizar com Callot, Goya, Hokusai, Picasso? Tenho a certeza de que ninguém… Nem mesmo George Herriman e Charles Schulz.
Republicou isto em Uma Bedeteca Anónima.